Sérgio Muylaert*
As armadilhas históricas são perigosas e excedem a todas as outras. Até que a Assembléia Nacional Constituinte fosse convocada com a Emenda Constitucional n° 26, de 1985, a urdidura legalista evitou os riscos de transformações mais profundas do modelo instaurado e mesmo que se possa da anistia política dize-la como resposta da lei, compatível com a realidade, naquele agosto de 1979, a consciência de cada qual, ao estilo do que vaticinou o poeta, deve ser consultada: oh mar salgado, quanto de teu sal são lágrimas de Portugal (!)
Para um país cuja vida institucional transcorra com a sua aparência de normalidade, dentro dos padrões da legalidade constitucional do estado democrático de direito, os trinta anos da Lei de Anistia Política devem ser motivo de júbilo. Contudo, o débito deste processo econômico e social em que estamos mergulhados, com o correspondente atraso histórico, é gigantesco e recomenda que as demonstrações de sentimento cívico sejam discretas.
A explicação para o impasse que advém de um falso dilema pode estar na percepção precipitada sobre os fatos consumados e simplesmente abstraídos da própria história ou colhidos pela sua aparência, a partir do mote do imediatismo míope.
Na mesma toada nos acostumamos a testemunhar estereótipos e campanhas maniqueístas onde mocinhos e bandidos travam seus combates. Dessas práticas tormentosas os confrontos protagonizados por defensores do movimento armado de 64 e os eventuais opositores daquele regime político ditatorial seriam meros resquícios daquela miopia.
Por outro lado, a crença do Povo perante as autoridades e instituições públicas serviria de esteio a que a própria Cidadania se desconstituísse, de fato e de direito, da legitimidade inerente ao direito das gentes para agir. Agir, sim, em nome da democracia e da liberdade, defender o que lhe é da Soberania.
O estigma da perplexidade se apoderou da sociedade civil. O fenômeno isolado e exclusivo da força falou mais alto. Imensas maiorias permaneceriam literalmente imobilizadas. As camadas sociais ricas e pobres, classes médias, gerações inteiras, da população brasileira foram descoladas do que fazer e subjugadas pela força das armas testemunhariam a destituição do Presidente da República democraticamente eleito.
No bojo de seu aparato, onipotente e onipresente, esta força vinha por dominar e paralisar a opinião pública dividida e, sob o véu do ajuste político do ano de 1979, os limites explicáveis daqueles confrontos transcenderam a sua simplicidade aparente. Sob o impulso de seu necessário aperfeiçoamento a lei de anistia política, de 1979, somente com a revisão de 2002 veio a ser burilada e ganhou nova roupagem segundo o ato das disposições constitucionais transitórias como sabemos, para alcançar tratamento compatível com a reparação econômica, nos casos de perseguição exclusivamente política.
O país e a nacionalidade haveriam de ser alvos preferenciais desta deliberada e sistemática mutilação da Cidadania. A se abaterem sobre o conjunto da sociedade brasileira eram unicamente versões, fragmentos de histórias, debitados ao exercício de revitalização do pensamento ocultado. O que subsistiu, desde então, não seria o direito a verdade. Eram as seqüelas do ordenamento jurídico excepcional.
Trinta anos não são trinta dias e nisto se faz estreitar a relação entre os fatos econômicos daquela época que os aproxima do texto da lei de anistia: o sentido de valor econômico das reparações indenizatórias. E por que não dizer também dos recentes estremecimentos de 2008, no mundo financeiro, cuja violência derrubou o sistema do neoliberalismo de portas trancadas para as maiorias?!
Com a globalização econômica o escopo para a consolidação do modelo se orienta no sentido dos interesses atendidos das classes empresariais, com exclusividade, a se refletir por automação na totalidade da ordem econômica e da política, sob o jargão da liberdade plena de iniciativa. Desponta o claro interesse de agir da sociedade civil em relação aos direitos difusos diante de tantas controvérsias explícitas. Flagrante e desproporcional é esta lesão que afeta direta e diuturnamente as pessoas. Raia um clamor de Justiça.
Não estariam, então, determinadas empresas nacionais e tantas outras, estrangeiras, sediadas no país, compelidas a provar o custo-benefício de alguns privilégios obsequisamente obtidos do período ditatorial? Onde justificarem o emprego da mão-de-obra sumariamente desativado, ao arrepio das normas e convenções internacionais, a partir de sistemáticas violações de direitos humanos dos trabalhadores e suas famílias?
Para os efeitos jurídicos, o que seria tácito postular, em ação regressiva, se o dever do Estado permanece omisso? Como proceder com essas reparações econômicas não expressamente contempladas na lei de anistia política? Quando menos se disser, daria para apurar neste confronto de dados o crescimento astronômico do lucro privado das empresas e instituições bancárias, aportes financeiros com a participação ostensiva de governantes locais e externos, submetidos ao mesmo ‘aparelhamento’ do Estado. A América Latina, canteiro de operações macabras, das ditaduras prestantes a esquemas da Operação Condor e variáveis, em especial, no Cone Sul, regrediu.
Recentes soluções por países centrais atingidos por desequilíbrios financeiros foram adotadas para recuperar empresas e grupos econômicos dos que atuaram sempre e de forma globalizada. A contextualização do choque negativo nos respectivos setores da economia não se traduz, porém, para tratamento justo das pessoas atingidas por esta tragédia financeira sob cumplicidade omissiva daqueles governos, ao sabor da mão invisível do mercado. Nem mesmo se sabe da adoção de medidas mais enérgicas de regulação para responsabilizar seus verdadeiros culpados.
De uma a outra face desta mesma e única questão deve o Direito das Gentes, no marco de um autêntico Direito dos Povos, sem matizes, filigranas e embustes, recobrar o fôlego, onde quer que os direitos a Memória e a Verdade possam integrar os Direitos Humanos, em nome das Coletividades.
Sérgio Muylaert – Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros; foi Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2004-2008); integrou a CDH da Ordem dos Advogados do Brasil e presidiu a Associação Americana de Juristas no DF, Seção Fundadora.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
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ANÍSTIA POLÍTICA
Apesar de reconhecer o empenho do presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão em atenuar a dignidade de milhares de brasileiros, concordo quando ele admite haver injustiças nas indenizações (O Globo, 05.09.2009), dou como exemplo o meu caso, processo nº 2002.01.11530. Por participar de greves, de movimentos pela redemocratização do país e ter-me colocado contra a corrupção, nepotismo, gastos excessivos, transporte de material radioativo sem atender requisitos de segurança e inúmeras ilicitudes no âmbito da administração da INB-Indústrias Nucleares do Brasil em plena ditadura militar, fui interrogado no famigerado SNI e posteriormente demitido. Desde então tenho enfrentado todo o tipo de perseguição e constrangimentos, inclusive nos governos dos presidentes FHC e LULA, fatos que me levaram a trabalhar na informalidade. A portaria nº 1942, de 14.10.2008, do Ministério da Justiça, ratificou a declaração de anistiado político, porém negou-me a pensão mensal vitalícia. Indago: O que difere a minha anistia às concedidas ao jornalista Cony, cartunista Ziraldo ou metalúrgico Lula?
Roberto Machado
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